A linguagem e as linguagens de Bruno Rios
Em chapas rígidas de madeira, há pequenos desenhos gravados em sulcos, elementos
coloridos colados sobre a superfície, traços retos e sinuosos, algumas letras do alfabeto latino.
Mas parece não haver nenhuma síntese formal, como se as composições estivessem em
movimento, algo reforçado pela característica serial dos trabalhos. Bruno Rios desenha e
risca as superfícies como quem deambula pela cidade: não há projeto prévio, mas uma
justaposição de gestos, acasos e pequenos acúmulos; talvez venha também daí a sensação de
uma ligeira mobilidade dos elementos.
Num outro gesto, igualmente discreto, o artista posiciona fogos de artifício em terrenos
baldios, registrando-os em fotografia. Construções abandonadas, árvores invasoras, mato e
entulho coexistem brevemente com o cintilar da explosão, numa atmosfera ao mesmo tempo
reconhecível, efêmera e inusitada. Mas não se trata de um espetáculo, ou de uma mensagem
assertiva. Como nos desenhos, as fotos registram pequenos acontecimentos, no interior dos
resíduos urbanos, por meio dos signos que constituem uma linguagem partilhada e da própria
arte, enquanto linguagem aberta.
Na exposição, a multiplicidade de sentidos começa pelo título. Vaga é presente do indicativo
do verbo vagar, deambulação sem objetivo, deriva. É também o nome que se dá ao espaço
vazio — como um pedaço de chão —, à espera de ser preenchido por um corpo, ou um
significado. Além disso, vaga é sinônimo de onda e, por extensão, de um movimento
sincronizado; uma multidão, os dejetos urbanos no curso de um rio, o conjunto de setas que
apontam a uma mesma direção. É a palavra que nomeia a série de pequenos gestos
“sígnicos".
Sobre compensado preparado com massa acrílica, o artista deposita camadas de tinta spray
fosca, de modo a não deixar marcas (embora seja possível perceber diferenças sutis nas
qualidades de preto, a depender do maior ou menor acúmulo). Em seguida, risca a superfície
com goivas e pontas-secas, criando desenhos que são, na verdade, quase signos, cujos
significados nos escapam. Afinal, segundo Barthes, “os signos de que a língua é feita, só
existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem”.¹
De fato, várias das formas traçadas se repetem nos trabalhos do artista — linhas retas e
tracejadas, retângulos, curvas, setas e pontos —, mas não chegam a constituir um sistema
fechado, decodificável, de linguagem. É como se fossem vagamente linguagem ou, quem
sabe, um vagar das linguagens, antes de se assentarem, instituídas e reconhecíveis.
O artista percorre as ruas recolhendo materiais descartados, cujo uso pregresso é também
incerto — pedaços de madeira, restos de chapas recortadas, borracha, acrílico, plástico, metal,
papelão. Eles se acumulam no ateliê e servem de gabarito para a criação dos desenhos:
presença sutil da cidade, que agora existe enquanto sulco; vaga lembrança da materialidade
que lhe constitui.
A lógica dos trabalhos é a dos pequenos gestos, da curiosidade do olhar para aquilo que se
acumula, mas que já perdeu sua forma e função originais, criando combinações abertas, que
não se encerram num todo formado pelo esquema figura-fundo. Nas fotografias, ainda que os
fogos de artifício ocupem o centro das composições, as faíscas, assim como a fumaça,
parecem se fundir à paisagem, como a linha vertical que coincide com o ângulo reto das
paredes, em uma delas, ou as pequenas estrelas sobrepostas ao céu, em outra.
Ainda nos termos de Barthes, pode-se dizer que os trabalhos do artista não se configuram
como um enunciado, mas uma enunciação:
Assim, é possível reconhecer sinais gráficos que se repetem, tanto no interior dos trabalhos,
quanto na memória de cada um que os vê, embora sejam “insituáveis”. Afinal, num contexto
urbano, quem nunca se deparou com um pedaço de papelão jogado, um sarrafo, um terreno
baldio ou uma placa de trânsito? No entanto, os jogos de signos “gregários”, propostos por
Bruno Rios, não se fecham em mensagem, nem mesmo a partir de sua repetição.
Na tradição gráfica, um estereótipo é o resultado da transposição, por meio de um molde, de
uma página cuidadosamente composta por tipos móveis e, eventualmente, por imagens
gravadas. Assim, o impressor pode prescindir do trabalho de montagem e imprimir o mesmo
texto aos milhares, inclusive vender cópias da matriz a outras gráficas — por isso mesmo que
“estereótipo” tornou-se metáfora para algo sedimentado no imaginário comum.
Mas “este monstro” que, segundo Barthes, estaria adormecido em cada signo, não encontra
lugar nos trabalhos, justamente porque os “signos” de Bruno Rios são da ordem do fazer
artístico: eles não têm a pretensão de comunicar — ou afirmar — nada. Se é possível falar
recolhendo aquilo “que se arrasta na língua”, o artista propõe um vagar da língua, da
linguagem, das imagens gravadas e dos acontecimentos efêmeros, cintilantes; instaurando um
olhar atento e curioso aos detalhes do mundo que nos cerca.
Texto crítico: Mariana Leme
¹ Roland Barthes, Aula, pronunciada em 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 15.
Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
² Idem, pp. 20-21.
o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme
este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua
— Roland Barthes, 1977.
expondo o lugar e a energia do sujeito, quiçá sua falta (que não é sua
ausência), [uma enunciação] visa o próprio real da linguagem; ela
reconhece que a língua é um imenso halo de implicações, de efeitos, de
repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes; ela assume o fazer ouvir
um sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e no
entanto reconhecido segundo uma inquietante familiaridade [...].²
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