A Galeria Base inicia uma nova etapa com o recém inaugurado espaço, apresentando os dez artistas com quem trabalhará. Nove deles em plena atividade e um, José Claudio (Ipojuca, 1932/ Recife, 2023), artista que viveu no Recife, cumprindo o papel de uma entidade tutelar, afinal, todo novo empreendimento necessita de um padrinho mais ou menos visível. Em arte não é diferente.
Os dez artistas foram eleitos acreditando que era um número casual. Mas não é ou, por outra, pode não ser. Dez é um número forte tanto do ponto de vista aritmético quanto cabalístico. Basta lembrar as inúmeras civilizações, incluindo a nossa, que, inspiradas nos dedos das mãos, adotaram o sistema decimal. Dez, lembra Platão, resulta da soma dos primeiros quatro números, fato significativo para os pensadores pitagóricos que o consagraram com a construção da tétrade ou “triângulo perfeito” (procure conhecê-lo, confira como o termo “perfeito” aplica-se a ele). Não será o caso de prosseguir nessa argumentação, para o que interessa, começar uma galeria com dez artistas demonstra sensibilidade e precisão, equilíbrio e variedade; reforça a ideia de que lidar com arte implica em lidar com o espírito.
Com sua gestualidade e paleta generosas, o desenho e a pintura de José Claudio, linguagens que ele frequentou quase exclusivamente, são polirrítmicos, simultaneamente sujos e precisos, econômicos e derramados. Diante de suas telas fica-se dividido entre a vivacidade da cena, retrato ou paisagem, não importa, e a pluralidade das soluções obtidas pelos pincéis. José Claudio desenhava, pintava e eventualmente esculpia como se extraísse o sumo do mundo. O vigor de sua obra celebra as cores, cheiros e sons das festas populares, da paisagem, das pessoas e dos bichos, que tanto amava. Sua fome de vida era tamanha que uma vez declarou que diante de uma bela manga ficava dividido entre pintá-la ou chupá-la. Aparentemente atuou nos dois planos.
Matheus Ribs (Rio de Janeiro, 1994), por sua vez, pertence a um tempo no qual as contradições, agora incontidas, afloraram em definitivo. Na esteira das manifestações de 2013, assistiu-se o despedaçamento de um Brasil que se divulgava unificado. Para quem, nos anos 1990, nasceu na comunidade da Rocinha, e estudou Ciências Políticas, a tradição afro-diaspórica, a qual ele pertence, bem como a condição dos povos originários, que ele veio a conhecer em Angra dos Reis, a realidade é outra. As cenas que povoam suas pinturas aludem a importância da restauração e cultivo de tradições antes sufocadas, em meio a um Brasil onde certa fração do agronegócio, de mãos dadas com garimpo ilegal, segue dizimando terras e populações, enquanto as metrópoles queimam e vitimam inocentes sob o tiroteio cruzado entre a policia e a bandidagem.
O trabalho de Rafael Vicente (Niterói, 1976) aproxima-se do de Matheus, embora o seu seja abstrato, valendo-se de metáforas discretamente sugestivas. As pinturas, esculturas e instalações de Rafael Vicente tratam de um mundo explodido, tornando-se escombros. Planos semelhantes a paredes estilhaçadas, vigas voando pelo espaço, remetem a voracidade da especulação imobiliária, que em São Paulo, em curtíssimo espaço de tempo, reduz a escombros e novos cânions a avenida Rebouças e que em Belo Horizonte fez da grandiosa Serra do Curral, uma cordilheira oca. O sentido de urgência da poética de Rafael provém das águas que inundaram o Rio Grande do Sul, das secas e queimadas cada vez mais frequentes, como as súbitas e intensas tempestades que irrompem em alto mar, invadindo as calçadas, fazendo pensar no aumento do nível d’água dos oceanos.
A obra polimórfica de Bruno Rios (Belo Horizonte, 1989) deriva de sua relação com o espaço urbano, de suas caminhadas sem rumo definido, atentas aos acontecimentos que infestam as grandes cidades com sua sinalética concebida com o propósito de organizar a caótica massa construída, as artérias projetadas ou surgidas espontaneamente para a circulação de mercadorias e da gente a serviço do capital. Iniciativa frequentemente fracassada, mas não fosse porque endereçado aos motoristas de carros e ônibus, e não aos passantes. Telas e desenhos recentes de Bruno, excertos de uma produção marcada pela amplitude de fronteiras, parecem cifras, esquemas, diagramas, mapas, constructos mais afetos a sensibilidade, do artista e do público, do que comprometidos com uma leitura objetiva das cidades.
Christian Cravo (Salvador, 1974) é um fotógrafo refinado e experiente, sempre viajando mundo afora, registrando simultaneamente a beleza de tudo o que há e a danação permanente que a assedia, promovida por uma humanidade pautada no estímulo ao consumo desenfreado e na guerra. A opção pelo preto e branco na maior parte delas, despoja suas fotos de qualquer glamour, ao passo em que acentua sua força e expressividade, no trato equilibrado com tensões contraditórias. Suas fotos são visões complexas de homens, animais, visões da natureza; o mundo como um amálgama de situações complexas e variadas, pletora de ritos, ações cotidianas, situações plácidas e críticas postas lado a lado.
Moacyr Travaglia (Cachoeiro de Itapemirim, 1978), persiste na construção de um sólido percurso dentro da abstração, com pinturas habitadas por formas orgânicas, flutuantes, sobrepostas ou tangenciando-se mutuamente, dotadas de articulações sutis, o que garante uma imprevista unidade a cada uma delas, dado que composta por fragmentos. Existem linhas e as bordas das formas são nítidas, mas a força do conjunto está na riqueza cromática, no talento de Moacyr em friccionar tonalidades discretamente distintas, o que é um modo eficaz de expandir a visão, faze-la desacelerar.
Há um quê de mineralidade nos desenhos de Lucas Länder (São Paulo, 1984), no crescimento dos troncos das árvores, seus anéis, círculos concêntricos obtidos a partir do lançamento de uma pedra na superfície de um lago. Arranjados em pedaços regulares, justapostos ou guardando intervalos entre si, suspensos na parede ou mesmo organizados no chão, cada desenho parece uma vista em corte ou em planta ou simplesmente uma ausência, uma área vazia cuja proximidade com outra perturba-a como um som distante é capaz de abrir uma fresta no silêncio. O artista defende a relação de seu trabalho com a memória, o que é uma pista fértil, pois a superfície do chão, qualquer chão, como coisa resultante do trabalho subterrâneo e infatigável das bactérias, erodindo as camadas horizontais ao longo de milênios, tem algo a ver com a memória e sua incidência em nosso pensamento e em nossos gestos.
Talvez o termo aventura seja mais adequado para se referir a percurso poético de Fabíola Triñca (Duque de Caxias, 1985), pois aparentemente ela está mais ocupada em abrir veredas do que estreitá-las. Apresentá-la na sequência a Länder faz sentido: como ele, mas a partir de procedimentos e preocupações próprias, Fabíola interessa-se pelo contágio entre matérias e objetos, com a interpenetração entre tudo o que há, pela maceração implacável que o tempo exerce sobre as coisas. Inicialmente, a artista especializou-se em tingimento vegetal, não demorou a perceber que nós, dada nossa natureza esponjosa, absorvemos e assimilamos tudo que nos rodeia, a começar pelo ar seco ou úmido no qual estamos submersos, nas noticias que esgarçam nossas parcas certezas, como as camisas -sucedâneo da pele- que vestimos.
Amante da vida e de sua gente, Guilherme Almeida (Salvador, 2000), imbuído da importância da sua missão, coloca a tradição africana no centro da sua poética, um corpo de conhecimento que ele estuda com profundidade. A força de seu trabalho advém dessa clareza, do interesse em garantir uma posição central aos saberes, as religiões de ascendência africana, cuja presença viva, ademais do seu papel crucial no estreitamento das relações entre o corpo o espírito e a natureza, são trincheiras de resistência. Suas telas são protagonizadas por representações econômicas, lavradas em desenhos de contornos grossos e cores vivas, de mulheres, homens, velhos e crianças, ao reconhecimento de que as atividades terrenas justificam-se a partir de empreendimentos conectados ao passado.
A plasticidade da poética de Luiz Martins (Machacalis, 1970), assentada em múltiplas linguagens, empreende um recuo radical em direção ao passado, levando a pensar no nascimento da linguagem e, por extensão, no nascimento do mundo. Para ele, o que chamamos realidade funda-se na representação das coisas existentes quanto na prefiguração das inexistentes, daquelas nascidas do trabalho da imaginação, em favor do aperfeiçoamento e da invenção. Suas pinturas e colagens são protagonizados por formas irregulares, achatadas e escandidas como silhuetas humanas, totêmicas, e objetos como lemes de barcos, foices, enxadas, pás, artefatos cuja origem se perde no tempo, todos eles essenciais, cada um deles uma descoberta formidável, digna de celebração. A relação com o passado, afirma o artista, irriga o presente, fertilizando-o, reinventando-o.
Texto: Agnaldo Farias.