top of page

José Cláudio e Guilherme Almeida | convergência de afetos | 2024

Nascido em 1932 e falecido em 2023, o pernambucano José Claudio era um pintor consagrado, igualmente reconhecido por sua erudição e pelo tempero picante de seus ensaios e crônicas, quando em 2000, como que celebrando a entrada no milênio, nasceu o baiano Guilherme Almeida. José Cláudio integralmente desenhista e pintor, enquanto Guilherme, em sintonia com o agora, vai do desenho à pinturas, eventualmente misturando-os e, ainda mais, incorporando jornais e plásticos. Apesar da distância temporal que os separa, das expectativas diversas, das compreensões do que seja arte, do papel do artista, do seu lugar na sociedade, ambos têm um ponto em comum: o afeto pelas coisas do mundo, acima de tudo de suas gentes, suas festas, celebrações, oferendas, ofícios, comidas, seus ritos cotidianos, as porções de alegria que nos é distribuída, as dores da exploração, outras dores. Em que pese as diferenças, o trabalho de ambos foi e, no caso de Almeida, vem sendo dedicado a cantar a imensidão da vida. 

Hedonista até o talo, José Cláudio declarou que diante de uma bela manga ficava dividido entre pintá-la ou chupá-la. A julgar pela extensão do seu trabalho e por seu corpo “torado no grosso”, ele fez, e muito, as duas coisas. Amante das festas populares, a começar pelo carnaval que brincou até não poder mais, do Pastoril, tema de uma pintura superior, o artista cuidava em registrar os inúmeros ofícios, por simples que fossem. Em todas essas pinturas sobressai a rapidez da execução, a elaboração que os mal informados acusavam de desleixada, desatentos à capacidade de capturar um acontecimento quase na mesma velocidade em que ele se dava. Aliás, não foi por outro motivo que o grande zoólogo e sambista, Paulo Vanzolini, professor titular USP, incluiu José Claudio em sua célebre expedição pelo Rio Amazonas, em 1975. Havia um fotógrafo no grupo mas, segundo Vanzolini, o artista vai muito além do olho mecânico. Sendo o artista quem era, a proposição revelou-se indiscutível. Pois essa exposição traz uma sobra preciosa dessa produção.

Com sua gestualidade intensa, sua paleta generosa, seu desenho a um só tempo sujo e preciso, sincopado e polirritmico, econômico e derramado, com planos de cor exaltados, contrastantes, José Cláudio era capaz de capturar um mesmo pássaro em 4, 5, mais ângulos, enquanto o bichinho debicava na sua frente, na iminência de um voo brusco. Sob seu olhar, pincéis e tintas, um pequeno pardal revelava a complexidade de sua energia potencial. E se se pode dizer isso de um passarinho dos mais comuns, o que dizer do seu trato de gente aglomerada, com os requebros dos corpos suados durante um frevo bem brabo? Basta ver a profusão de corpos seminus no que talvez seja a fração de uma praia, mulheres e homens arranjados, mais que isso, atufalhados numa pintura de formato retangular, vistos de frente, de lado, de cima, deitados e escorados na parte inferior da tela. E o que dizer das maneiras de representar cada corpo? José Cláudio, inimigo da uniformidade, dicionário ambulante de técnicas pictóricas, aborda cada corpo como um ser singular e, dentro de sua singularidade, sobra muita diversidade. Os corpos, cada um deles, abrem-se em mosaicos, e o conjunto deles converte-se em mosaico de mosaicos. E mesmo quando se restringe a representação de uma única pessoa, caso da pintura Sem título que ele, talvez pouco convencido desse nome em negativo, avisou ser uma bibliotecária, surpreende pela cabeça destampada da figura, pelo cabelo puxado para trás, pelo marrom dos braços e da saia com que ele a pintou para em seguida apagar, borrar, garantindo, justamente por esse procedimento arrevesado, a força da imagem. Amante da vida e de sua gente, Guilherme Almeida tem colocado a tradição africana no centro da sua poética. A força de seu trabalho advém dessa clareza, do interesse em garantir uma posição central aos saberes, as religiões de ascendência africana, cuja presença viva, ademais do seu papel crucial no estreitamento das relações entre o corpo o espírito e a natureza, são trincheiras de resistência. Telas como Perfumes para Senhor do Bonfim, Cosme e Damião, Subindo a Barroquinha atrás de Santa Bárbara, Se arrumando para Yemanjá, Samba de roda, são protagonizadas por representações econômicas, lavradas em desenhos de contornos grossos e cores vivas, de mulheres, homens, velhos e crianças, as voltas com ritos cotidianos de louvor as divindades, ao reconhecimento de que as atividades terrenas justificam-se a partir de empreendimentos conectados ao passado. A retomada respeitosa e constante dessas práticas, com destaque as que acontecem a céu aberto, que tomam para si o corpo da cidade, faz com que os antepassados se tornem presentes, palmilhando novamente o chão que outrora percorriam descalços. Um processo em que o antigo é a seiva que flui pelas veias dos corpos novos. Notável a busca desse jovem artista e a lucidez com que emprega o jornal como parte integrante de sua pintura. Aluno da Universidade Federal da Bahia, não entendia e não aceitava a prescrição de telas para a realização de pinturas, a linguagem que ele adotou para si. A intransigência de seus professores pareceu-lhe um modo de reprodução de uma teoria e prática discricionárias, alheias a realidade da periferia da Salvador e do Recôncavo, por onde vive e por onde se espalha sua família e seus iguais, onde o pouco e o ordinário, como o jornal, as latas de refrigerante e as garrafas de plástico PET, são preciosos. 

O processo de reciclagem, pedra de toque da nova agenda burguesa, vem sendo consciente e inteligentemente praticado desde sempre pelos extratos desfavorecidos de todos os povos que compõem o Brasil.A articulação das figuras humanas, dos objetos que compõem as cenas dessas telas, entre planos pintados com cores chapadas e retalhos de jornal, faz com que os retratados mantenham um pé na esfera intangível e outro na realidade. Nessas obras de agora, a imprensa, no Brasil o arauto de transmissão dos valores estabelecidos, tem que se haver com valores profundos, humanos, as festas de rua, os encontros com os amigos e parceiros, o comércio com a pureza dos sentimentos, a crença de que tudo que existe deve ser guiado por orientações superiores. Não obstante toda a dor sofrida e por sofrer, pois o caminho segue sendo árduo, para o nosso artista ainda vale a letra do imortal samba Alegria, de Assis Valente, ele próprio criança roubada dos pais e que trabalhou como escravizado muito depois da abolição da escravatura:

 

Minha gente, era triste e amargurada,

inventou a batucada, pra deixar de padecer

Salve o prazer, salve o prazer.

Texto: Agnaldo Farias

José Cláudio

G A L E R I A B A S E - São Paulo

R. Artur de Azevedo, 493 - Cerqueira César

contato@galeriabase.com.br

 + 55 11 2365-6417

Ter – Sex: 10h – 19h | Sáb: 10h – 15h

Galeria de Arte Contemporânea 0

G A L E R I A B A S E - Recife

Rua Professor José Brandão, 163 - Boa Viagem

contato@galeriabaserecife.com

+ 55​ 81 98666-2893

Seg – Sex: 9h – 18h 

Galeria de Arte Contemporânea 

bottom of page